Escambo não é hi-tech

3. Blockchain — Uma plataforma para tecnologias de valor

Phelipe Folgierini
6 min readNov 17, 2022

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No primeiro post escrevi que a tecnologia blockchain tornará barato e fácil transferir dinheiro. No segundo post, demos uma breve olhada em como o mundo pode ficar com a adoção da tecnologia.

Mas blockchains não serão utilizadas apenas para dinheiro e pagamentos. A mesma tecnologia que viabiliza trocas por meio digital de forma simples e barata está sendo adaptada para outros tipos de uso, como ações de empresas ou pontos de recompensa. O foco da indústria por um tempo foi adaptar a tecnologia blockchain para ser utilizada na troca de ativos financeiros, e uma quantidade impressionante de dinheiro e energia foi e ainda está sendo investida na criação dessas plataformas.

Isso é até emocionante. Principalmente se você trabalha com finanças. Mas é difícil saber um motivo pelo qual a maioria das pessoas se importaria se podemos reduzir o tempo de liquidação de empréstimos em folha ou se a DTCC terá a próxima grande revelação tecnológica do setor. Blockchains não se tornam objetos de intensa paixão para a maioria só porque facilitarão a vida dos maiores bancos do mundo.

A tecnologia Blockchain não nos dará apenas versões melhores do que já temos hoje — coisas como dólares, ações e pontos de fidelidade em lojas de departamento. A parte realmente empolgante é quais coisas novas podemos construir com a tecnologia. Voltando às analogias do primeiro artigo, a internet não melhorou apenas as tecnologias já existentes de TV, jornais, correio e rádio — também nos deu blogs, mídias sociais, smartphones, computação em nuvem e uma geração de celebridades do YouTube. O que a blockchain nos dará?

Vamos voltar um pouco no tempo. Qual é a diferença entre um dólar, um ponto e fidelidade na sua loja predileta e uma ação da Apple Inc.?

Estruturalmente, são muito diferentes. Dólares, ou qualquer moeda, são em sua definição clássica um meio de troca e uma reserva de valor. Dentro de uma zona monetária, todos concordam por convenção que podem ser trocados por bens e serviços (um meio de troca). O governo responsável por administrar essa moeda decreta políticas para ajudá-la a manter seu valor e evitar a inflação (uma reserva de valor). Quase todo mundo usa moeda.

Os pontos de fidelidade funcionam parecido. Mas eles só podem ser trocados por certos bens e serviços, são criados por uma empresa e não por um governo, e você só pode obtê-los na loja/empresa que os emite. Eles são mais como pequenos contratos que dão direito a uma certa quantidade de produtos da loja. Os pontos de fidelidade são realmente usados apenas por pessoas que frequentam a loja, o que sugere um certo perfil de classe e renda.

As ações da Apple também são um contrato, mas mais complexo — um pacote que inclui uma reivindicação sobre os ativos da empresa, além de outros direitos, como dividendos e voto. Estes são definidos tanto pelo próprio “contrato” quanto por um complicada estrutura legal de regulamentos de valores mobiliários e direitos dos acionistas. Ao contrário dos pontos de fidelidade, há um mercado secundário para negociação de ações. A maioria das pessoas pode ter alguma exposição à ações por meio de um fundo ou outro tipo investimento, mas a maior parte das ações e outros ativos financeiros são mantidos e negociados apenas pelos ricos ou quem trabalha diretamente no setor.

No fim, são objetos com aplicações distintas. Mas já é possível visualizar os eixos onde se conectam. Um dos eixos é: onde você pode usar? Em um extremo estão as moedas, que são aceitas em todos os lugares de uma zona monetária. No outro extremo estão os pontos de fidelidade, que só têm valor na loja que o emitiu.

Outro eixo é: quãl é o nível de complexidade? As moedas são simples — são uma unidade de valor que pode ser trocada por qualquer outra coisa. As ações são muito complexas: são pacotes de direitos e obrigações condicionais diferentes.

Outro eixo é: quem define o que é? As moedas são controladas por um banco central, os pontos de fidelidade por uma corporação privada. As ações são uma combinação: a empresa escreve seus próprios estatutos (o “contrato”), mas os reguladores de valores mobiliários e um corpo de leis de direitos dos acionistas, mantidas e aplicadas por um sistema legislativo e judiciário, desempenham um papel importante na definição (e aplicação) do que significa possuir ações da Apple.

De certa forma, são todos feitos da mesma coisa. Podem ser valiosos para nós por diferentes razões, são regidos por regras diferentes e existem fontes diferentes para essas regras. Mas cada um é uma coisa que podemos possuir, com um conjunto de instruções executáveis que definem o que é, dando-nos acesso a outras coisas.

Casa da Moeda de São Francisco, 1882–1885

Cada um deles é tecnologia. Não estamos acostumados a pensar em dinheiro, ações ou pontos de recompensa como tecnologia, mas eles são. A moeda, especialmente, é uma característica tão arraigada na vida moderna que parece invisível, fundamental.

Mas nós inventamos as moedas por um motivo: porque elas simplificavam o comércio. Elas eram melhores do que escambo. Elas não eram fáceis de criar e especialmente difícil de dimensionar. Elas exigiam matérias-primas, indústria e processos de fabricação sofisticados para criar unidades idênticas para evitar fraudes. Um complexo sistema legal e político teve que se desenvolver ao longo do tempo para apoiar o “aplicativo matador” da estabilidade de valor. As moedas modernas são feitas de engenharia, design, economia e teoria política.

Inventamos as ações porque elas eram um mecanismo útil para conectar investidores a empreendimentos privados que precisavam de capital. Isso exigia novas leis para estruturar as relações entre cada parte. Exigiu novos tipos de mercados — bolsas de valores — para expandir o mercado e torná-lo líquido. Profissões inteiras, áreas de atuação, ramos da jurisprudência, legislação, regulamentos e sistemas de escrituração foram construídos ao longo de séculos para formar o que hoje chamamos de bolsa de valores.

Os custos iniciais de novas tecnologias de valor são imensos. Há uma razão pela qual algumas delas levaram séculos para amadurecer. Toda tecnologia de valor precisa de uma maneira de registrar a propriedade — um token físico ou um banco de dados central que rastreie a propriedade. Precisa de uma maneira de executar as instruções que contidas no contrato e impor essas instruções se elas não forem seguidas. E acima de tudo, deve encontrar uma maneira de criar confiança, para que as pessoas realmente a usem. Requer metal, zonas monetárias, cartões perfurados, bancos de dados, edifícios altamente seguros, sistemas jurídicos, legislação, exércitos.

Antes da internet, tínhamos telefones, cartas, correio, lojas de CDs, televisão, livros e pilhas e pilhas de papel que eram transportadas de um lado para o outro entre prédios de escritórios. Então veio a internet e ficou óbvio para a maioria das pessoas que essas eram apenas tecnologias diferentes, cada uma com seu próprio “hardware” personalizado para mover informações, a maioria das quais poderia, aparentemente, serem substituídas por um plataforma geral que poderia mover dados de forma agnóstica.

Blockchain é uma plataforma geral para tecnologias de valor. É uma plataforma que nos permite construir tecnologias de valor com mais facilidade — uma maneira de registrar a propriedade, executar instruções e criar confiança em um sistema totalmente digital e descentralizado.

Assim como na internet, começaremos construindo análogos das tecnologias que temos hoje: dólares, ações, pontos de fidelidade. As versões blockchain desses produtos nem sempre prosperam, mas em muitos casos sim, porque a aplicação de blockchain afeta radicalmente suas estruturas de custos, abrindo-as para novas concorrências e novos mercados.

Mas, como mencionamos anteriormente, não vamos apenas construir novas versões de coisas antigas. Também vamos construir coisas novas. Sempre foi muito difícil construir novas tecnologias de valor, mas em breve será fácil. Milhares de pessoas ao redor do mundo já estão construindo coisas novas e curiosas, testando novos aplicativos, novas plataformas, experimentando novos modelos de negócios em novos mercados. As lacunas entre “moeda”, “pontos de recompensa” e “ações” começarão a ser preenchidos por tecnologia à medida que experimentamos diferentes combinações de direitos, obrigações, relacionamentos e valor.

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